domingo, 14 de novembro de 2010

Nas nossas mãos e na nossa inteligência




"Não tenham vergonha de dizer que são pobres! Não tenham vergonha de dizer que têm fome!"
Baptista Bastos
b.bastos@netcabo.pt


Estas pungentes exclamações foram proferidas pela médica Isabel do Carmo, no último "Prós e Contras" da RTP-1. Acrescentou que a questão fundamental é a do sistema, que está totalmente errado e que consigo arrasta um mar de miséria, de fome e de desespero. Aliás, um pouco por todo o lado o problema do capitalismo está a ser contestado (às vezes com extrema violência) e estudado nos seus múltiplos aspectos. No caso português, é um sistema roto e desvairado. Nas últimas décadas, os seus representantes políticos, o PS e o PSD, obedientes servis aos ditames e às normas, conduziram a nossa terra a uma situação intolerável. Não digo nada de novo. Só um deformado moral ou um mal-intencionado podem fazer o elogio deste estado de coisas.

Claro que o capitalismo tem encontrado sempre formas e fórmulas de, camaleonicamente, se adaptar às circunstâncias históricas, com pequenas cedências sociais que o vão mantendo. A força maior do capitalismo é essa quase infinita possibilidade de se respaldar no trabalho dos outros. A implosão do comunismo (e tomo o conceito "comunismo" com as maiores precauções e reservas) alargou, direi: endemicamente, o sistema vencedor. E este não soçobrará, tão cedo, exactamente porque o seu antagonista morreu às mãos dos seus próprios mantenedores.

Pouco ou nada é debatido, hoje, em Portugal. Os panegiristas do "mercado" entendem-no como sacrossanto, e os nossos escritores abandonaram-se às suas pequenas e lastimosas vidinhas, recolhendo-se a uma mediocridade social que contradiz as grandes tradições de intervenção da cultura portuguesa. Num livro a vários títulos notável, e cuja leitura vivamente recomendo, "Um Tratado sobre os Nossos Actuais Descontentamentos", Edições 70, Tony Judt, um dos mais importantes pensadores políticos contemporâneos, falecido há poucas semanas, adverte-nos para os perigos que nos ameaçam com um "sistema único" e ideário sem oposição intelectual. Chamo particularmente a atenção dos meus Dilectos para o capítulo "1989 e o Fim da Esquerda", que começa com esta axioma de Adam Michnik: "O pior do comunismo é o que vem a seguir."

O autor escreve: "Com o colapso [do comunismo] desfez-se toda a meada de doutrinas que durante mais de um século haviam ligado a Esquerda. Por mais pervertida que fosse a variação moscovita, o seu desaparecimento repentino e completo só podia ter uma repercussão desestabilizadora em qualquer partido ou movimento que se afirmasse 'social-democrata'. Essa era uma peculiaridade da política de Esquerda. Mesmo que todos os regimes conservadores e reaccionários do mundo implodissem amanhã, com a imagem pública irremediavelmente manchada pela corrupção e incompetência, a política do conservadorismo sobreviveria intacta. Os argumentos para 'conservar' continuam tão viáveis como sempre. Mas, para a Esquerda, a ausência de uma narrativa sustentada historicamente deixa um espaço vazio."

Apliquemos a Portugal (mas, também, ao resto do mundo) o conceito ideológico contido nesta admirável fórmula. Esvaziada do "inimigo principal", o caminho seria, inevitavelmente, o capitalismo, pois "pelos vistos, nada mais havia." Esta esquizofrenia impeliu os partidos "socialistas" a avançar por ínvias sendas, com o resultado que se conhece. A "terceira via" de Tony Blair não é, somente, um logro: é uma traição inominável, que conduziu ao apoio de um criminoso de guerra, W. Bush, e à pessoal abdicação do seu animador inglês. Adicione-se que Blair amealhou uma fortuna fabulosa, e os aplausos que lhe dirigiam apagaram-se na apagava e vil tristeza do seu destino.

Se havia algo de esquizofrénico na social-democracia pós Muro de Berlim, as apressadas solidariedades a que se comprometeu deram origem a outra esquizofrenia: a da Esquerda. Podemos aplicar estas reflexões ao caso português? Podemos e devemos. Quando Mário Soares meteu o "socialismo na gaveta" abria o armário a todas as solicitações e emboscadas. Mas ele sabia muito bem o que fazia. Arrependeu-se, mais tarde, tendo em conta as suas declarações e pronunciamentos posteriores, mas, na ocasião, já era incensado pela Direita mais retrógrada. Cavaco encontrou o caminho escancarado para todas as malfeitorias. E o surgimento de António Guterres, conhecido pelo Beato António, é a lógica decorrência de todos esses abandonos e negligências.

Sócrates é o produto típico desse clima de falsa euforia. Acontece que não sabe de ideologia e navega ao sabor dos ventos. Porém, as vítimas somos nós. Pedro Passos Coelho é um homem cordial, educado e ambicioso. Só isso. Não serve porque não adianta nem atrasa. Recomendo-lhe a leitura de qualquer texto de Tony Judt, e dos ensaios que "El Pais" tem publicado sobre o grande autor. Na Imprensa portuguesa não encontra. Que fazer? A alternância de poder (não alternativa) foi muito bem pensada e estruturada pelas classes dirigentes, as quais, no caso português, são das mais retrógradas e ancilosadas que se conhece.

Perguntará o Dilecto: então, não há nada a fazer? Há. Tudo está nas nossas mãos e na nossa inteligência.


b.bastos@netcabo.pt

11 comentários:

  1. Aqui está um texto para pensar, e o Baptista Bastos pode escrever à vontade, o censor não faz serviço no Jornal de Negócios, sorte a dele.

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  2. Parabéns ao "Gato Morense" pela escolha deste texto. Espero que todos nós, repito; Todos nós possamos aproveita-lo para reflectir um pouco sobre a realidade deste País que é o nosso, e o que cada um pode fazer para mudar o rumo de uma história que parece fatalmente caminhar para o abismo.

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  3. Infelizmente, não é uma realidade exclusiva do nosso país mas, praticamente, de toda a humanidade. Os regimes ditadores disfarçados de democratas são os mais difíceis de combater e os capitalistas perceberam isso há muitos anos. Derrubaram-se ditadores fascistas, nazis e comunistas.É preciso estar atento e não baixar os braços. Se todos quisermos, este capitalismo selvagem, onde vale tudo para acumulação da riqueza de um povo nas mãos de meia dúzia, um dia há-de dar lugar a uma verdadeira democracia, ou pelo menos a algo que dela se aproxime.

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  4. isto é um Post muito evoluído.Eu não percebo nada desta Literatura.Se fosse para Malhar no Sinogas, agora isto!!!

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  5. 18:48

    Não perdoas ao Sinogas o facto de ele não te ter arranjado emprego. É a vida. Afinal segundo se diz, nem para a mulher dele arranjou.

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  6. O Sinogas não arranjou trabalho para a mulher''''ENTÃO NAO ESTA NA cAMARA DE aRRAIOLOS?eLE É QUE QUERIA IR MANDAR PARA A EMPRESA DO liXO!!!

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  7. Caríssimo BB,
    consigo estou sempre a aprender, queria eu ter conhecimentos para debater as suas teses mas definitivamente não os tenho na necessária equivalência. Você é dos poucos articulistas em Portugal que raciocina os problemas actuais da nossa civilização, utilizando exemplos nacionais de política e circunstâncias para fazer uma crítica magistralmente elaborada e muito bem escrita. Por isso o felicito.
    Há por aí alguns invejosos que acham que o seu “poleiro” de verdugo da falta de moral alheia, não passa de um recanto no favor dos poderosos. Mas não passam disso. Bem sei que das suas fidedignas inclinações partidárias entre 1950 e 1980 alguma coisa deve ter ficado. Mas a forma como deixou o PCP com dignidade e sem barulho (ainda antes da Zita Seabra), por nunca ter sido estalinista e condenar o que se passava na Roménia, relevam cabalmente a aristocrática pose da ‘Superioridade Moral dos Comunistas’.
    De igual modo, o seu passado de anti-salazarista convicto, as perseguições que sofreu da PIDE, inclusive com danos irreparáveis para a sua família, a forma como mandou à m… o Santana Lopes em plena Av. da República e lhe esfregou nas ventas o ofício em que ele o demitia, são marcas indeléveis de uma dignidade de carácter que avulta sobremaneira perante as mesquinhas, falsas e pérfidas acusações de receber benefícios da CML de João Soares.
    Por outro lado, não sei se ainda são actuais os conceitos de Capitalismo e Comunismo que inscreve no seu artigo. Elas ainda não estarão no tal “caixote do lixo da História” que Trotsky estendeu a Kerensky para este lá depositar as suas ideias, mas, como sabe, os tempos de hoje trazem-nos sucessivas mutações da realidade que tornam o dualismo marxista muitíssimo mais complexo. Gilles Lipovetsky, no seu ensaio sobre o individualismo contemporâneo, chama a essa complexidade a Era do Vazio.
    O pensamento económico moderno baseia-se já na opção não pelo ser humano ‘ideal’ mas pela pessoa ‘real’. O encadeamento dos raciocínios que, aparentemente, nos convenceram é da seguinte ordem: o ser humano é um caudal de paixões; as paixões reorientam-se para outras paixões; existem paixões mais produtivas que outras; a melhor paixão é o interesse próprio; o interesse governa o Mundo; os interesses tornam-se mais produtivos quando combatem entre si; os interesses competitivos ajustam-se espontaneamente entre si; surgem frutíferos mecanismos de ajuste que funcionam autonomamente; o seu automatismo não requer intenções subjectivas de fazer o Bem; não há necessidade de intenções solidárias, porque basta o respeito pelo mercado; os mecanismos de mercado orientam-se para o melhor bem comum!!
    Belo edifício teórico, não haja dúvida. Ruiu com estrondo.
    A globalização está a demonstrar a sua ineficácia: uns Evoluem depressa, outros Involuem ainda mais rapidamente.

    A bem do NEO-LIBERALISMO. A mal da HUMANIDADE.

    Esqueçam o Sinogas.

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  8. Caro anónimo das 00:51, permita-me que incline perante a sua escrita, quase ao nível do próprio BB.
    Também as suas palavras contêm muitos ensinamentos, que bastante faltam fazem a este espaço.
    Mesmo sem se perceber muito bem se existe proximidade ideológica com Baptista Bastos, o que também não é importante, a sua evidente identificação com aquele pensador, faz de si pessoas confiável, e cujas ideias bem que poderiam aparecer mais vezes, fazendo com que valesse a pena passar por aqui.
    Há muitas consciências por despertar.

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  9. A blogosfera morense está carente de discussão séria, necessita da criação de uma escola de pensamento, desinibida e com alguma objectividade de análise, que o anónimo das 00:51 16/11/10 demonstra ter.
    É tempo de cortar com o obscurantismo dos últimos anos, onde aculturação da copofonia degradante, esteve na ordem do dia, e foi feita gala com pompa e circunstância.
    Hoje, algumas pessoas acreditam que a nossa realidade pode e deve mudar, este texto colocado aqui, é provavelmente um passo nesse sentido.
    Parabéns ao anónimo. Bem haja.

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  10. "...onde aculturação da copofonia degradante, esteve na ordem do dia, e foi feita gala com pompa e circunstância."

    Totalmente de acordo com tudo o que disseram, mas parece-me que uma discussão séria, não pode começar com a afirmação supra citada. Não porque não contenha a sua dose de verdade, mas porque claramente é uma prática generalizada a todos os Municípios deste País. Não há nenhum Município que não tenha as suas Feiras gastronómicas, as suas semanas dedicadas às tasquinhas, as suas festas de Reformados, e tudo o resto que não vale a pena acrescentar.
    Se está mal, há que combater. Mas com a consciência de que há maus hábitos que são nossos, outros que são comuns ao País.
    Se queremos mudar alguma coisa, não é exibindo os nossos ódios de estimação, que lá vamos.

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  11. 10:55

    Não tenho um dedo que adivinha, mas algo me diz que o Sr. participou em muitas desses "aculturações".
    Conheço bem esta terra que é a minha. Não é difícil apontar as pessoas com capacidade para fazer este tipo de comentários, até porque não são assim tantos.
    Dificilmente encontrarei algum que não tenha visto nesses "aculturamentos". E não eram penetras, não; Eram convidados de honra, enquanto eu não passava de um anónimo circunstancial.

    É preciso mudar muita coisa?? é é, mas há demasiados gatos escondidos com rabo de fora.

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